segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

PREGAÇÃO DE FREI RANIERO CANTALAMESSA.

Cidade do Vaticano (RV) - O Papa Francisco participou na manhã desta sexta-feira, na Capela Redemptoris Mater, no Vaticano, da terceira pregação de Advento, a cargo do Pregador da Casa Pontifícia Frei Raniero Cantalamessa, intitulada "A sóbria embriaguez do espírito". Eis o texto integral:

1. Dois tipos de embriaguez
Na segunda-feira depois de Pentecostes de 1975, no encerramento do Primeiro Congresso Mundial da Renovação Carismática Católica, o Beato Paulo VI dirigiu, aos dez mil participantes reunidos na Basílica de São Pedro, umas palavras, na quais definiu a Renovação Carismática como "uma oportunidade para a Igreja". Após ter lido o seu discurso oficial, o Papa acrescentou, improvisando, estas palavras:
"No hino que lemos esta manhã no breviário e que remonta a Santo Ambrósio, no século IV, há esta frase difícil de traduzir, embora muito simples: Laeti, que significa com alegria; bibamus, que significa bebamos; sobriam, que significa bem definida e moderada; profusionem Spiritus, ou seja a abundância do Espírito. ‘Laeti bibamus sobriam profusionem Spiritus’. Poderia ser o lema impresso em seu movimento: um programa e um reconhecimento do próprio movimento".
O mais importante, que deve ser notado de imediato, é que essas palavras do hino certamente não foram escritas originalmente para a Renovação Carismática. Elas sempre fizeram parte, sempre, da Liturgia das Horas da Igreja universal; são, portanto, uma exortação dirigida a todos os cristãos e, como tal, eu gostaria de apresentá-las de novo, nestas meditações dedicadas à presença do Espírito Santo na vida da Igreja.
De fato, no texto original de Santo Ambrósio, no lugar de "profusionem Spiritus", abundância do Espírito, há "ebrietatem Spiritus, ou seja, a embriaguez do Espírito[1]. A tradição, mais tarde, tinha considerado esta última expressão demasiado ousada e a havia substituído por uma mais branda e aceitável. No entanto, desta forma, perdia-se o sentido de uma metáfora tão antiga quanto o próprio cristianismo. Precisamente por isso, na tradução italiana do Breviário, retomou-se o texto original do verso Ambrosiano. Uma estrofe do hino das Laudes da Quarta Semana do saltério, em língua italiana, de fato, diz:
Seja Cristo o nosso alimento, seja Cristo a água viva: nele provamos sóbrios a embriaguez do Espírito.
O que levou os padres a retomar o tema da “sóbria embriaguez”, já desenvolvido por Filon de Alexandria[2], foi o texto no qual o Apóstolo exorta os cristãos de Éfeso, dizendo: "E não vos embriagueis com vinho, que é porta para a devassidão, mas buscai a plenitude do Espírito. Falai uns aos outros com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando ao Senhor em vosso coração” (Ef 5,18-19).
A partir de Orígenes, são incontáveis os textos dos Padres que ilustram este tema, ora utilizando a analogia, ora o contraste entre embriaguez material e embriaguez espiritual. A analogia consiste no fato de que os dois tipos de embriaguez infundem alegria, fazem esquecer as preocupações e fazem sair de si mesmos. O contraste consiste no fato de que enquanto a embriaguez material (de álcool, de drogas, de sexo, de sucesso) causa instabilidade e insegurança, aquela espiritual causa estabilidade no bem; a primeira faz sair de si mesmos para viver além do próprio nível racional, a segunda faz sair de si mesmos, mas para viver além da própria razão. Para ambas usa-se a palavra “êxtase” (o nome dado recentemente a uma droga mortal!), Mas um é um êxtase para baixo, o outro um êxtase para o alto.
Aqueles que pensaram no dia de Pentecostes que os Apóstolos estavam embriagados tinham razão, escreve São Cirilo de Jerusalém; o único erro deles foi atribuir a causa da embriaguez ao vinho ordinário, enquanto que nesse caso se tratava do “vinho novo”, espremido da “videira verdadeira” que é Cristo; os apóstolos estavam, sim, embriagados, mas daquela embriaguez que mata o pecado e dá vida ao coração[3].
Aproveitando a deixa do episódio da água que jorrou da rocha no deserto (Ex 17, 1-7), e do comentário sobre isso que faz São Paulo na sua Carta aos Coríntios ("Todos beberam da mesma bebida espiritual... Todos nós bebemos de um só Espírito") (1 Cor 10,4; 12,13), o próprio Santo Ambrósio escrevia:
"O Senhor Jesus fez derramar água da rocha e todos beberam dela. Aqueles que dessa água beberam na figura, foram saciados; aqueles que beberam dela na verdade, ficaram até mesmo embriagados. Boa é a embriaguez que infunde alegria. Boa é a embriaguez que fortalece os passos da mente sóbria... Beba Cristo que é a videira; beba Cristo que é a rocha da qual jorrou a água; beba Cristo para beber o seu discurso... A Escritura divina se bebe, a Escritura divina se devora quando o suco da palavra eterna desce para as veias da mente e para a energia da alma[4]”.
 2. Da embriaguez à sobriedade
Como fazer para retomar aquele ideal da sóbria embriaguez e encarná-lo na presente situação histórica e eclesial? Onde está escrito, de fato, que um modo tão “forte” de experimentar o Espírito era uma prerrogativa exclusiva dos Padres e dos primeiros tempos da Igreja, mas que não o é mais para nós? O dom de Cristo não se limita a uma época específica, mas oferece-se para todas as épocas. Há o suficiente para todos, no tesouro da sua redenção. É precisamente papel do Espírito tornar universal a redenção de Cristo, disponível para cada pessoa, em cada ponto do tempo e do espaço.
No passado, a ordem que se inculcava era, no geral, a que vai da sobriedade à embriaguez. Em outras palavras, o caminho para alcançar a embriaguez espiritual, ou o fervor, pensava-se, era a sobriedade, ou seja, a abstinência das coisas, da carne, o jejum do mundo e de si mesmos, em uma palavra, a mortificação. Neste sentido o conceito de sobriedade foi aprofundado especialmente pela espiritualidade monástica ortodoxa, ligada à assim chamada “oração de Jesus”. Nessa, a sobriedade indica “um método espiritual” feito de “vigilante atenção” para libertar-se de pensamentos passionais e das palavras más, retirando da mente toda satisfação carnal e deixando nela, como única atividade, a contrição pelo pecado e a oração[5].
Com nomes diferentes (despojamento, purificação, mortificação), é a mesma doutrina ascética que se encontra nos santos e nos mestres latinos. São João da Cruz fala de um “despojar-se e despir-se, para o Senhor, de tudo aquilo que não é o Senhor[6]”. Estamos na fase da vida espiritual chamada de purgativa e iluminativa. Nessa, a alma se liberta laboriosamente dos seus hábitos naturais, para preparar-se à união com Deus e às suas comunicações de graça. Estas coisas caracterizam o terceiro estágio, a “via unitiva” que os autores gregos chamam “divinização”.
Nós somos os herdeiros de uma espiritualidade que concebia o caminho de perfeição de acordo com esta sequência: primeiro devemos habitar por muito tempo na etapa purgativa, antes de entrar na unitiva; é necessário exercitar por muito tempo a sobriedade, antes de poder experimentar a embriaguez. Todo fervor que se manifestasse antes daquele momento deveria ser considerado suspeito. A embriaguez espiritual, com tudo o que ela significa, se destina, no final, aos “perfeitos”. Os outros, “os "proficientes", devem buscar especialmente a mortificação, sem pretender, enquanto lutam ainda com os seus próprios defeitos, de fazer já uma experiência forte e direta de Deus e do seu Espírito.
Existe uma grande sabedoria e experiência na base de tudo, e ai daquele que considerar essas coisas como ultrapassadas. É necessário, porém, dizer que um esquema tão rígido assim denota também uma lenta e progressiva mudança de acento, da graça ao esforço do homem, da fé às obras, até beirar o pelagianismo. De acordo com o Novo Testamento há uma circularidade e uma simultaneidade entre as duas coisas: a sobriedade é necessária para atingir a embriaguez do Espírito, e a embriaguez do Espírito é necessária para chegar a praticar a sobriedade.
Um ascetismo realizado sem um forte impulso do Espírito seria esforço morto, e não produziria mais do que "o orgulho da carne". Para São Paulo, é "com a ajuda do Espírito" que devemos "morrer às obras da carne" (cfr. Rom 8,13).
O Espírito nos é dado, portanto, para sermos capazes de mortificar-nos, antes mesmo que como prêmio por ter-nos mortificado.
Uma vida cristã cheia de esforços ascéticos e de mortificações, mas sem o toque vivificante do Espírito, assemelhar-se-ia – dizia um antigo Padre – a uma Missa na qual se lessem muitas leituras, se realizassem todos os ritos e se levassem muitas ofertas, mas na qual não ocorresse a consagragação das espécies por parte do sacerdote. Tudo permaneceria o que era antes, pão e vinho.
“Assim - concluia o Padre – é também para o cristão. Se também ele realizou perfeitamente o jejum e a vigília, a salmodia e toda a ascese e cada virtude, mas não realizou, pela graça de Deus, no altar do seu coração, a mística obra do Espírito, todo esse processo ascético é inacabado e quase vão, porque ele não tem a exultação do Espírito misticamente obrando no coração[7]”.
Este segundo caminho – aquele que vai da embriaguez à sobriedade – foi o caminho que Jesus fez com que os seus apóstolos percorressem. Apesar de terem tido como mestre e diretor espiritual o próprio Jesus, antes de Pentecotes eles não foram capazes de colocar em prática quase nenhum dos preceitos evangélicos. Mas quando, em Pentecostes, foram batizados com o Espírito Santo, então os vemos transformados, capacitados para suportar por Cristo dificuldades de todo tipo e, por fim, o próprio martírio. O Espírito Santo foi a causa do fervor deles, muito mais que o efeito dele.
Há uma outra razão que nos leva a redescobrir este caminho que vai da embriaguez à sobriedade. A vida cristã não é apenas uma questão de crescimento pessoal em santidade; é também ministério, serviço, anúncio, e para cumprir essas tarefas precisamos do "poder do alto", dos carismas; em uma palavra, de uma experiência forte, pentecostal, do Espírito Santo.
Precisamos da sóbria embriaguez do Espírito, ainda mais do que tinham os Padres. O mundo tornou-se tão indiferente ao Evangelho, tão seguro de si que somente o “vinho forte” do Espírito pode ter dar razão à sua incredulidade e puxá-lo para fora da sua sobriedade toda humana e racionalista que se acha “objetividade científica”. Só as armas espirituais, diz o Apóstolo, “têm o poder de Deus de destruir fortalezas, destruir os argumentos e toda arrogância que se levanta contra o conhecimento de Deus, e de submeter toda inteligência à obediência de Cristo" (2 Cor 10, 4-5).

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